Aporofobia nas pessoas que usam drogas
Adela Cortina, filosofa espanhola que nos trouxe a palavra APOROFOBIA para nomear o medo ou receio dos pobres, na contextualização que faz para apresentar a palavra conta como os meteorologistas optaram por dar nomes de pessoas às tempestades. A autora conta-nos que o objetivo dos meteorologistas era fazer com que nos relacionássemos com a tempestade como algo mais real, de quem nos sentimos próximos, como acontece com alguém a quem tratamos pelo seu nome. Esta linha de raciocínio serve para ilustrar a necessidade de dar nome às coisas, neste caso, de dar nome ao que considera ser a fobia aos pobres, nomeando-a de aporofobia.
Confusos sobre qual a relação desta questão com a saúde? Enquanto assistentes sociais somos categoria profissional muitas vezes chamada a explicar as “camas sociais” nos hospitais “as pessoas que, sem abrigo, dormem nas salas de espera das urgências”, “os que vão aos serviços de urgências procurar uma sopa”, “os toxicodependentes que chutam na veia à porta de um qualquer condomínio” … Sentimos que precisamos de um nome para nos relacionarmos com isso, porque claramente “determinantes sociais da saúde” não chega, e a aporofobia é esse conceito.
O que está a acontecer em algumas cidades do país em matéria de consumos de droga não é novo, não desapareceu, nunca desapareceu. O que está a acontecer é que as respostas ao fenómeno estagnaram e o consumo não. As alterações de padrão de consumo das pessoas que usam drogas pedem, há anos, alterações estruturais nas políticas públicas, desde logo, pela mudança nos consumos: da heroína para a cocaína, do injetado para o fumado, o que nos devia fazer pensar que precisamos de respostas mais flexíveis. Honra seja feita à plasticidade da redução de danos que conseguiu adaptar-se à realidade dos tempos, dos consumos, da pandemia, das crises e das pessoas com consumos cada vez mais instáveis, com mais comorbilidades, mais velhas e mais pobres. Tão simples como olhar para o que se faz no Brasil, por exemplo, nos CAPS AD-Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas, e na forma como estes respondem aos consumidores de cocaína, realidade que sempre foi a brasileira; chama-se a isto benchmarking e não é difícil! Da mesma forma que o mundo está de olhos postos no “modelo português” de intervenção em comportamentos aditivos e dependências, que é muito mais que a descriminalização, Portugal tem de colocar os olhos em quem já tem a intervenção comunitária, há tantos e tantos anos, integrada na resposta do estado, sendo o Brasil apenas um exemplo.
A abertura das salas de consumo assistido aconteceu em Portugal com um atraso de, pelo menos, 20 anos, mas pasme-se: as pessoas continuam na rua e são muitas! Será a recriminalização a nova tendência? Se voltássemos ao sistema de criminalização e aquelas pessoas voltassem a adoecer e a encher estabelecimentos prisionais e hospitais, estaríamos a resolver o problema? E se proibíssemos as pessoas de circular entre cidades do país, porque vão consumir numa cidade que não é a sua? E se proibíssemos as pessoas de beber, de jogar no euromilhões ou nas raspadinhas? Torna-se bastante evidente que a proibição não é solução, não resolve nada, condena pessoas (sempre as mesmas pessoas) à clandestinidade e ao sofrimento e só passa o problema de um lugar para o outro. A questão é que este problema diz respeito a pessoas, pessoas que muitos querem ou preferem ignorar, com quem não querem proximidade, vetando-as, muitas vezes, à invisibilidade enquanto cidadãos/ãs e à clandestinidade enquanto utilizadores.
O Estado de Direito, o Estado Social e as suas políticas públicas têm uma matriz humanista, princípio de que não podemos abdicar. As pessoas só são visíveis nas ruas de muitas cidades do país porque fazem parte do país, porque existem e, algumas delas, porque estão em sofrimento social, psicológico e físico e as estruturas que o Estado Social pensou para elas não as acolhem como elas são, inteiras, membros da sociedade.
As pessoas que usam drogas não querem consumir à frente das nossas escolas, condomínios ou parques infantis, as pessoas que usam drogas somos nós, e tal como nós querem frequentar espaços onde as acolham como são e, neste momento, esses espaços são as salas de consumo assistido. Mas… e quando estes espaços encerram? Quando encerram as pessoas e os seus consumos não cabem em lugar nenhum a não ser na rua, que também é delas. Porque muitos dos espaços para as pessoas em situação de vulnerabilidade são, eles próprios, espaços de exclusão: onde não se entra porque se tem um cão, ou porque tem de se separar do companheiro/a, ou porque apesar de querer ser tratada no feminino parece um homem e é melhor não entrar na ala feminina, porque está “bêbado”, porque se droga...
A sociedade e as suas solidariedades são, muitas vezes, uma espécie de “Luluzinha” com um clube onde “pessoa não entra” porque, azar dos azares, as pessoas são muitas coisas, mas são, sobretudo, pobres e os pobres não têm escolha… Há, ainda, “castas” de pobres, os que tiveram azar e os que são responsáveis pela situação em que se encontram, sendo que as pessoas que usam drogas recaem, normalmente, no segundo pacote. São, ou estão, pobres e invisibilizados porque lhes é atribuída culpa, por estarem como estão, como se tivessem escolhido este lugar.
Como elemento adicional, temos o contexto social dos países que condiciona as mais diversas estruturas das cidades, sendo a saúde, a educação e a segurança social, aquelas em que mais sentimos o pulsar desses contextos. Veja-se, por exemplo, a crise da habitação, que faz com existam nas cidades pessoas a viver em carros sendo, porém, pessoas que trabalham, que não se podem afastar dos seus locais de trabalho, que continuam a pagar o ginásio (não porque são uns manipuladores do sistema, mas porque esses são os seus balneários). As pessoas, pela gentrificação das cidades, mudaram ou foram forçadas a mudar-se para casas mais pequenas, periféricas, que tudo condicionam, inclusive, a violência latente do estreitamento das relações de proximidade. E, também, as pessoas que, tendo emprego, sufocam de ansiedade perante a subida da Euribor. E os migrantes que se encavalitam em “quatro paredes caiadas”, acreditando que podemos ser uma terra de oportunidades. E as pessoas idosas, isoladas, que vivem sós e/ou com o cônjuge com idade semelhante, com parcas reformas, que comprometem a satisfação básica das necessidades e/ou do seu plano terapêutico.
Pensemos agora que dentro de cada um desses núcleos existem pessoas que também usam drogas. Os espaços de acolhimento que existem também são para estas pessoas, não podem ser excludentes de algumas partes das pessoas só porque as julgamos e condenamos sem, muitas vezes, conhecer a sua história. Portugal não tem espaços que cheguem para acolher as pessoas que precisam, mas tem ainda menos espaços seguros e sensíveis ao trauma, onde as pessoas se sintam integralmente acolhidas e cuidadas nas suas múltiplas vulnerabilidades.
Todas/os somos chamadas/os como cidadãs/ãos, profissionais e políticos a promover espaços de cuidado para todas/os nas nossas cidades. Espaços que não retraumatizem, não reprimam quem já soma muitas camadas de sofrimento. Proponho que (re)leiam o último artigo de Jorge Sampaio para o Jornal Público:” (…) nunca seria demais recordar que a solidariedade não é facultativa, mas um dever que resulta do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Façamos uma vez mais prova de que sabemos estar à altura das nossas responsabilidades.”
Proponho, também, que nos debrucemos sobre o conceito de Aporofobia e que reflitamos sobre como o medo dos pobres pode estar a condicionar o modo de implementação das políticas públicas, os modelos de organização das nossas instituições e, até, das nossas práticas profissionais.
Marta Borges
Assistente Social
Doutoranda em Serviço Social
09 de fevereiro de 2023
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